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A poesia livre de Carlos Alberto

      O maior encanto de Cabaret Mineiro está na sua absoluta liberdade narrativa. Uma liberdade que começa pelo estilo – o filme ora assume o tom de comédia de costumes ligeira, ora adquire uma aura de estranha irrealidade onírica para em seguida partir abertamente para a gozação e o deboche ou para o lirismo mais descabelado – e termina na recusa de Carlos Alberto Prates Correia, seu diretor, em seguir as leis da narrativa romanesca ou teatral clássica (moldes e padrões do cinema tradicional dominante).

      Na estrutura narrativa convencional predominante (exemplos recentes: Eu te Amo e O Homem que Virou Suco) o que interessa ao diretor é narrar a história, desenrolar diante do espectador uma trama-espetáculo formada por ações e reações de um certo número de personagens face a certas situações dramáticas articuladas por relações de causalidade estritas. Nesses filmes, cada personagem possui uma aparência definida, um caráter, um complexo de motivações psicológicas, uma história pessoal, uma posição na sociedade e na trama que se quer contar. Cada plano, cada cena, cada imagem tem a missão básica de “fazer a história andar” e, através dela, passar ao espectador as significações pretendidas pelo autor. Através de uma narração se veicula uma certa moral e um sentimento do mundo.

      No Cabaret Mineiro não há nada disso. É inútil tentar fazer-lhe a sinopse, essa arma por excelência dos críticos sem imaginação. Ele não tem uma história, ele tem personagens. Tais personagens “acontecem” simplesmente, eles apenas são. Não os títeres de um destino que os ultrapassa nem os figurantes de qualquer História, real ou fictícia, concebida na cabeça de algum demiurgo divino ou humano. Os personagens de Cabaret Mineiro são donos de uma curiosa independência de palavras e ações e parecem obedecer a uma lógica própria e desconhecida, surreal.

      Ouso afinal pronunciar a palavra mágica: surrealismo. Ela não é gratuita. Sabe-se da antiga admiração de Carlos Alberto por Luis Buñuel. Na obra de Buñuel, como em todo o surrealismo, não há fronteiras entre o real e o imaginário: tanto o interior da mente como o exterior físico dos homens estão situados no mesmo plano da representação artística.

      A lógica que preside o desenrolar dos acontecimentos, das formas e dos seres que habitam os filmes de Buñuel é a lógica dos sonhos, uma lógica da mente. Mas como a mente se constitui na experiência concreta e histórica do real, as leis, as formas e os conteúdos desse real a impregnam decisivamente.

      A lógica que governa os sonhos ainda é misteriosa e mesmo a palavra que a designa parece deslocada aqui, pois pertence ao domínio do discurso racional, do pensamento claro e objetivo, enquanto o sonho flui do inconsciente, das regiões obscuras onde reina o irracional. Ao contrário do discurso estritamente objetivo da narração dita realista, a representação onírica nos faz ver uma pessoa onde ela não está fisicamente (como a Salinas onipresente do Cabaret Mineiro). As associações mentais livres nos permitem representar o todo pela parte (a criada de Avana “é” uma fruteira, um fogão, um pingo de óleo sensual na coxa), os desejos da alma criam realidades do corpo, a imaginação cria realidades alternativas, as memórias recriam o passado e assim por diante. É no jogo diário e imprevisível do sonho e da realidade que constituímos o sentido de nossas vidas, num processo sempre renovado, sempre por fazer: não há um sentido já pronto, uma rota pré-determinada.

      Cabaret é isto, a vida e os sonhos de Paixão, o aventureiro do São Francisco. O filme parece desconexo numa primeira visão porque a própria vida de Paixão é desconexa, como todas as vidas, aliás. É a sua viagem existencial, interior e exterior, que se conta. Quando Carlos Alberto não está filmando o próprio Paixão e suas “visões”, ele filma as pessoas e as coisas que o envolvem – as cidades por onde passa, as mulheres e os homens que o cercam, os objetos que compõem os ambientes onde vive, as músicas que representam seu espaço cultural e afetivo, a Natureza que forma seu campo de visão. Numa palavra, seu mundo.

      Por exemplo, a seqüência final (de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro de Guimarães Rosa “Primeiras Estórias”). Paixão espreita a cena de longe por um telescópio. Ainda assim, esta é uma cena para ele, é uma imagem dele, como ele a vê. Paixão está do lado de Sorôco na sua angústia e dilema, pois é um dos inumeráveis amigos que, “com ele, ia até onde ia aquela cantiga”. A marujada que envolve Sorôco para levá-lo pra casa é o povo da sua cidade, o povo de Paixão também, aquele “nós” que forma o centro de sua identidade social e cultural.

      Se o eixo do filme é Paixão – suas aventuras, seus sonhos, seu sentimento do mundo -, se tudo se articula em torno dele e em relação a ele, nem por isso Paixão é o único foco de interesse de Carlos Alberto. Pois através de Paixão se filma todo um mundo, uma região do País: certos modos específicos de viver e de criar a vida. Carlos Alberto guarda até hoje, apesar de 15 anos de Rio e 10 de Belo Horizonte, uma identidade profunda, a do montes-clarense impenitente à qual não falta nem mesmo um pouco de bairrismo.

      Todo artista tem um cerne de inspiração a que retorna obsessivamente: a política, a infância, o amor, a História, uma paisagem, a amizade... A inspiração de Carlos Alberto é sua região de origem, com tudo que isso implica: uma psicologia comum a seus habitantes, uma atitude semelhante diante da vida, certas estruturas familiares, sociais e políticas precisas, um ritmo lento, uma sensualidade preguiçosa, uma imaginação delirante, um humor característico, uma composição musical da personalidade.

      O segredo de Carlos Alberto e da liberdade de que falava no começo desta crônica está em filmar esses modos tradicionais de vida através de uma linguagem resolutamente moderna. Não se trata porém de uma modernidade postiça, imposta ao tema, pois a linguagem nasce do próprio assunto filmado, como que brotando do seu interior. No Cabaret Mineiro tratava-se de reinventar o antigo, de reencontrá-lo transformado pelo presente, de descobrir-lhe a linguagem secreta, a da poesia. E a poesia, como todos sabemos, só existe quando é livre.

 

(Ronaldo de Noronha – EM – 1981)

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