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Fest-Rio: A Semana da Crítica
Grande Sertão: Veredas
Algumas notas sobre o cinema de Carlos Prates Correia
José Carlos Avellar

      Rio Verde. Norte de Minas. Dia de sol. Tudo tranqüilo, quase ninguém na rua. Na beira da calçada, vendo o tempo passar, o poeta Zeca de Oliva. O tempo passa luminoso. E devagar. E em silêncio. Passa sem mexer em nada, passa deixando todas as coisas em seus devidos lugares. Na beira da calçada, o poeta Zeca de Oliva sorri malicioso, levanta a cabeça, escancara a boca e grita feliz:

      - Êeee vontade de xingar nome feio!

      Grita, fecha os olhos, levanta a cara para o céu e depois, devagar, abre os olhos (para ver o que aconteceu como reação ao berro) e prolonga um sorriso de contentamento.

      O grito, assim como aparece, grito sozinho, que não tem eco nem resposta, grito para dentro, como um resumo da paisagem percorrida (e do modo de percorrer essa paisagem) nos filmes de Carlos Prates Correia: Perdida, de 1975, Cabaret Mineiro, de 1980, e o pronto para ser estreado Noites do Sertão.

      Saudação/xingação no tranqüilo dia de sol, o grito do poeta Zeca de Oliva depois que bate na tela, num instante qualquer de Perdida (num instante qualquer mesmo, como se nem tivesse nada a ver com a história da pobre Estela, que virou Janete ao fugir dos patrões e arranjar emprego novo num prostíbulo), o grito de Zeca, depois que passa na tela, fica na memória da gente como expressão de uma vontade de reagir tão reprimida, tão auto-reprimida que só consegue se expressar assim; o palavrão mesmo não é berrado, o que se berra é a vontade de dizer palavrão. O palavrão fica por dentro, bolo na garganta. Confessar a vontade que está por dentro (assim, berrada, mas berro que soa como sussurro, como voz interior), admitir o desejo, essa é a mais forte, a mais subversiva e desrespeitosa de todas as agressões.

      Norte de Minas. Rio Verde. Montes Claros. Buriti Bom. A paisagem, aquela coisa exterior que a gente vê logo que a imagem chega na tela: a paisagem é aberta/fechada. Aberta, luminosa, ampla, agradável aos olhos, equilibrada e em boa ordem, sim, mas fechada por referência a um mundo exterior a ela.

      Existe um outro lugar. É possível sair de lá. Ir, voltar e ir de novo até – de caminhão, como faz o Júlio César em Perdida, de trem, como faz o Paixão de Cabaret Mineiro, de carro, de trem ou a cavalo, como faz Iô Liodoro em Noites do Sertão, que vai a Belo Horizonte buscar a nora Lalinha, abandonada pelo marido. A paisagem é fechada. Forma aberta mas mundo fechado, interior. A paisagem interior, essa é mais fechada ainda. As pessoas mais fechadas que a paisagem são como o poeta Zeca de Oliva: mal conseguem às vezes confessar os seus desejos.

      Cabaret Mineiro, é verdade, parece que bota para fora a vontade apenas anunciada pelo poeta de Perdida, pois ali os personagens dizem mesmo palavrões a todo instante. Mas dizer que os personagens falam palavrão todo o tempo é um certo exagero, pois o palavrão não é gritado como ofensa. É pronunciado a meia voz, educadamente, quase cantarolado em versinhos. É xingamento, mas xingamento feito com bons modos, como linguagem conduzida por normas e leis tão rígidas quanto as que determinam a sociedade que, de tão fechada e rígida que é, dá até vontade de dizer palavrão mesmo em dias calmos de sol. Os personagens de Cabaret Mineiro são educadamente deseducados. Parece até que eles se abrem aos seus desejos, se desnudam, se falam, se tocam, agem contra a repressão. Mas de fato só conseguem substituir uma repressão por outra, pois o condicionamento da primeira é tão forte que ela como que força a saída por um caminho em espiral que mantém  a rota determinada no ponto de partida.. A saída, embora saída, leva de novo ao interior. O desejo de dizer palavrão é igual ao desejo da dançarina espanhola de Montes Claros, que o poeta Drummond cantou em verso num dia que o aventureiro Paixão canta em seus sonhos no Cabaret Mineiro.

      Noites do Sertão, agora, prossegue o caminho em volta dessa paisagem aberta/fechada botando de novo todos os desejos para dentro, mais fechados, mais reprimidos, mais calados, mais impedidos de se expressar livremente, presos por um jogo de convenções sociais rígido como pedra. Tudo aparece mais reprimido e por isso mesmo mais perto de explodir. E no filme, na tela, na imagem, bem na frente da imagem, o que aparece é essa tensão. Num momento, Nhô Gualberto quase estica o braço para tocar nas coxas de Glória. Noutro, Iô Liodoro quase diz para Lalinha que ela tem seios bonitos (depois de ficar dizendo que ela tem braços bonitos, ombros, pescoço, cintura e mãos bonitas). Noutro ainda, o veterinário Miguel, na fazenda Buriti Bom só de passagem, sentado ao lado de Glória no alpendre da fazenda, quase olha para ela olhos nos olhos para perguntar se ela estava pensando na mesma coisa que ele estava pensando. E, num breve instante ligeiramente mais desreprimido, na beira do rio, longe da casa, à sombra do Buriti Grande, Glória pergunta a Lalinha se era pecado, se havia algum erro sentir-se atraída por um homem. 

      As pessoas morrem de vontade umas pelas outras mas nenhuma delas tem a coragem de dizer suas vontades aberta e deseducadamente. E é bem nessa paisagem do desejo reprimido a ponto de se expressar apenas em berros sussurrados, como o do poeta Zeca de Oliva em Perdida, que se movimentam os filmes de Carlos Prates Correia. Indicar essa vereda para a compreensão dos filmes desse autor bem singular do cinema brasileiro contemporâneo não explica tudo mas é um ponto de partida para um passeio mais denso em seu grande sertão.

      Rio Verde. Montes Claros. Buriti Bom. Norte de Minas. Paisagem interior tranqüila e bem iluminada (ali onde não existe ação, e onde não existem palavras, o que aparece mesmo é a imagem ou, já que falamos de cinema, a fotografia. A foto de José Antônio Ventura, em Perdida, a de Murilo Salles em Cabaret Mineiro, e a de Tadeu Ribeiro em Noites do Sertão). Paisagem interior em ordem reprimida. Pior que isso: auto-reprimida.

      Sertão. Creio que é bem assim que o espectador sente esses três filmes, e que é bem porque eles são sentidos assim que cada um representa algo mais amplo que a história imediatamente visível. Cada um representa neste pedaço do sertão, nesta paisagem fechada e de gente fechada, o país como um todo. Representa o país porque a experiência de viver entre a forte repressão do poder e o limite da auto-repressão que o poder tentou enfiar na cabeça das pessoas foi uma experiência comum a todos nós nesse tempo em que os três filmes de Prates se fizeram. A vontade de dizer palavrão veio mesmo ali por 75. Palavrão de verdade começou a ser berrado alto e bom som uns cinco anos depois. Os bons modos, a repressão institucionalizada e quase nem sentida é coisa da noite de agora. Não teríamos aí, nesses três filmes, uma fotografia bem fiel de cada um dos pedaços de nossa história contemporânea?

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