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Perdida em 2008

Não sei se os leitores já perceberam, mas o cinema brasileiro atual inventou um novo subgênero fílmico: as sociochanchadas.

 

As sociochanchadas são muito parecidas entre si, em sua quase totalidade produzidas no Rio de Janeiro, com padronização televisiva e de roteiro esquemático sobre a luta de classes nas favelas cariocas ou algum rocambole nos grotões nordestinos. Percebam que o fenômeno pouco difere de outro mais antigo, aquele das pornochanchadas. Apenas trocou-se o sexo pela mensagem social, pelo engagée politicamente correto.

 

Uma segunda diferença fundamental é que as pornochanchadas foram feitas com as promissórias de Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios. Caso dessem errado, o produtor falia e tinha que passar uns tempos escondido em Mongaguá. Já as sociochanchadas chegam pagas ao público, não oferecendo o mínimo risco aos realizadores, mesmo que apenas três espectadores as testemunhem.

 

Nem precisamos citar o título de alguma sociochanchada. Como todo fenômeno bárbaro, elas estão por aí, tomando cada vez mais espaço. Basta consultar a lista dos filmes em cartaz ou ler a sinopse dos projetos que buscam patrocínio.

 

Podemos dizer, sim, que vozes destoantes são “O Cheiro do Ralo”, “Amarelo Manga”, “Jogo Subterrâneo”, “Crime Delicado”, o novo do Mojica; filmes que provam a existência de uma outra maneira de se fazer cinema, longe da indústria oportunista que se criou em volta desse hábito sociochanchadeiro.

 

Infelizmente, o estrago se faz visível: o cinema nacional hoje vive o paradoxo de mobilizar milhões de reais para produzir resultados artísticos e comerciais pífios. Um discurso de tolerância crescente realimenta o ciclo, fazendo-se de conta que dezenas de tentativas muito parecidas entre si nada guardam em comum.

 

O antídoto para a sociochanchada, para a gordura demagógica e populista do cinema brasileiro atual, encontra-se em obras-primas como “Perdida” (1975), do cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia. Aos diretores mauricinhos de classe-média, que tratam o povo (uma idealização perversa do ente popular) como gatinho bebendo leite em pires, o cinema de Prates Correia mostra que a importância de se olhar o povo é descobri-lo em suas falhas e insensatez, É conhecer ricos ou pobres sem maniqueísmo, sem hipocrisias; apenas humanos, demasiadamente humanos.

 

Qual novo filme brasileiro consegue a poesia, obtusa em simplicidade, de “Perdida”? Provincianamente universal, Estela (Maria Silvia), agregada em casa de família, não envelhecerá até que o Brasil permaneça de pé. E através das suas sensações mínimas, de seu prazer limítrofe da dor e da humilhação, o íntimo se funde ao redor, a uma anotação pitoresca e reflexiva da terra.

 

Estela começa sendo despedida pela patroa, porque marido e filho a assediam sexualmente. A partir daí, sai pelas estradas de Minas, conhece Júlio César (Álvaro Freire) que a encanta e faz esquecer a fidelidade atávica ao lar onde trabalhava. Júlio é um caminhoneiro que propõe “Vou te levar pra zona (...) Lá tem muita alegria, tem música, tem dança”. Transforma – junto com a cafetina Emília (Thelma Reston) – Estela em Janete, no bordel em Rio Verde.

 

Os afazeres de Estela/Janete são rotineiros: um entra e sai de almas tristes do quarto, até que enamore o poeta Zeca de Oliva (Helber Rangel), rendido e redentor, cozido em fogo brando por Estela preferir a força malandra de Júlio. O preço é deixar escapar a chance, talvez única na vida, de ser amada verdadeiramente.

 

Zeca é um grande personagem, tão bom quanto Estela/Janete. Seu tipo de homem castrado, refém do desejo feminino, permite até que encene uma imitação do rival. Tem ainda função ao declamar poemas, que somam-se à trilha sonora e ao idioma saboroso do interior (“Dá o pira”, “Cê acha?”), na caracterização caipira sudestina. Ao ser assassinado, desfaz a tensão do triângulo, libertando Janete para um fim mais irônico e verossímil.

 

“Perdida” sofreu cortes importantes na Censura, que nos fazem imaginar o que havia e que nunca foi mostrado. Boates fim de mundo, canções populares da época (a cena de Estela e Zeca, ao som de “Estácio, Holly Estácio”, é das melhores do cinema brasileiro), e o mobilizar imóvel da pobreza e da ignorância – tudo é dito em 80 minutos. Quando o casal visita a família de Estela na roça, ofuscados pelo fusca laranja e pelo silêncio atordoante e sepulcral, o desprezo dos pais é Freud, mas também sociologia sem partido, sem doutrinação ideológica.

 

Prates Correia tenta largar Estela no mundo com uma ponta de esperança, rumo à metrópole, a Belo Horizonte, naquele movimento formiguinha que modificou a face do país para sempre. Em rara entrevista concedida para o jornalista Marcelo Miranda, no jornal “O Tempo”, o autor sugere que sua mineiridade – consequente brasilidade – era acidental, pois no caso de “Perdida” buscava “transgredir o modelo da ditadura das reconstituições históricas e adaptações literárias”. Com certeza foi mais longe, atingindo no estilo desprovido de grande técnica uma linguagem inovadora, eterna, a ser olhada como exemplo de bom cinema.

 

O final deste artigo explode naturalmente: pelo bem do cinema brasileiro, o leitor não deve engolir mais as sociochanchadas. Até que nossos diretores aprendam em mestres como Carlos Alberto Prates Correia e outros a verdadeira miséria e precariedade humanas. Longe, muito longe da dramaticidade rasteira e do “povo de aluguel” que esvaziam os cinemas hoje em dia.

 

(Andrea Ormond – 07/09/2008)

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